sexta-feira, 7 de março de 2014

A Cortina

      Mês passado li o livro Maria da Vila das Formigas, que narrava a história de Kitahara Satoko, uma jovem japonesa do pós-guerra que se converte ao catolicismo e auxilia várias crianças numa vila no centro de Tóquio, onde habitavam famílias paupérrimas que coletavam materiais recicláveis para sobreviver.
     O trecho abaixo narra o diálogo entre dois trapeiros moradores da vila, “Papai” e O “Professor”, que eram os responsáveis pela local. Na conversa, os dois decidiam pela permanência da senhorita Kitahara na Vila das Formigas, quando o “Professor” faz uma interessante metáfora da morte com o fechar da “cortina”:


     “O ‘Professor’ começou dizendo:__Compreendo muito bem o desejo de “Papai” de reter para sempre a senhorita Kitahara na Vila das Formigas. Eu, porém, acho que o mais importante para um homem é a ‘cortina’. Falava com ímpeto marcando as palavras. __Quando moço sempre pensei que haveria de me dedicar a algo útil. Mas de um tempo para cá, estou pensando que os meus desejos de jovem deram errado. Quer seja rei ou milionário, tanto quanto possa ter sido feliz na terra, o homem acaba morrendo. Por isso, temendo a morte, todos, desejando ser felizes, vivem no terror e para esquecer o medo, se entregam ao álcool, procuram prazeres ilícitos, distrações, alucinações. O homem, por mais rico que seja, ocupe a posição que ocupar, não é feliz. Se um homem quer ser feliz de verdade, é preciso que não tenha medo da morte. Por isso, além de pensar em levar uma vida que tenha alguma finalidade temporal, é bom viver uma vida que conduza a uma morte feliz, a uma morte que, realmente, tenha uma finalidade. Noutras palavras é muito importante para o homem pensar como morrer. Por isso, considero mais importante para o homem a ‘cortina’, o fim do drama. Portanto eu nada faço, para impedir que a senhorita Kitahara desapareça da Vila das Formigas. Jesus disse que não existe maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos. Mas eu acho que ajudar seu próprio amigo mais amado a concluir a beleza de sua vida, um ato de amor maior ainda.”

Maria da Vila das Formigas, Matsui Toru, Ed. Cidade Nova – 1980 p. 111.




Kitahara Satoko veio a falecer no dia 23 de janeiro vítima de tuberculose, aos 29 anos de idade sendo que, nove deles (após sua conversão), dedicados às crianças da Vila das Formigas. 


Paradoxo

  Revirando papéis antigos, encontrei este poema de um grande amigo, Wilson José, que lecionava Filosofia na mesma  época em que eu lecionava História

. A poesia, de 1999, era uma ode ao Brasil que estava prestes a completar 500 anos!


PARADOXO
Ao 500 anos de país chamado Brasil

Parte de mim é imenso sertão,
Outra parte grande oceano.
Minha fome é interrogação,
Metade de mim, grito profano.

Sou duas faces de um rosto
Que hora preza ser, outra o ter.
Uma face é miséria, desgosto,
Outra, consumo moda, prazer.

Fruto de enlatada cultura,
Sou filho preza o ser, outra o ter.
Sou mãe-pátria sempre à procura
do culpado desta sorte atroz.

Sou aquela prostituta jovem
Que abre as pernas e mostra as tetas
a qualquer um que ao seu encontro vem
sugar do peito as últimas gotas.

Metade de mim adormece
Embriagada em esplêndido berço.
Metade outra, ovelha sem messe,
peleja em continhas do terço.

Sou gigante da natureza,
Rico, forte, belo, tropical.
Mas sou cara feia surpresa
ante o sistema injusto e mau.

Ipiranga! Não ouvi o seu brado!
E alguns cantam-no retumbante!
Morreu à velha utopia abraçado
sem liberdade, flor pujante!

Parte de mim é doce euforia
quando do futebol se versa.
Parte outra, angústia em demasia
se na rua um mendigo atravessa.

Parte mim, signo de tudo,
outra parte, sinal de nada!
Sou assim, vestido ou desnudo,
peregrino em longa jornada!

Meu nome! Ainda queres ouvi-lo?
BRASIL TERR’ADORADA GENTIL!          
Poesia em versos, sem estilo!
Incógnita que sempre existiu!


Wilson José, Belo Horizonte, 22/02/1999